Entrevista concedida a Ana Claudia Maia em 2002 para o Caderno de Leituras Compartilhadas - MEDO
O Rio de Janeiro continua lindo. Mas infelizmente esta beleza está encoberta pela sombra da violência. Uma sombra que encobre também outras grandes e belas cidades brasileiras. É triste ver as cadeiras nas calçadas de antigas ruas do subúrbio serem recolhidas para dentro de casas gradeadas. O comércio fecha suas portas, as casas, suas janelas e a população seu coração, trancados a cadeado pelo medo. Lar de brasileiros e estrangeiros, democrática em suas praias e rodas de samba, e hoje rasgada pela miséria e violência.
Em seu livro Cidade Partida, o jornalista Zuenir Ventura conta a história de uma cidade que nasceu com a vocação da acolhida e foi mutilada pela insegurança. Em entrevista ao Leituras Compartilhadas, este cronista da vida carioca fala da cultura do medo estabelecida e de sua crença de que o Rio de Janeiro vai continuar sendo…
LC:: O grande problema do Rio de Janeiro atualmente é a violência. O que isso gera no cotidiano da cidade?
Zuenir: O problema dos níveis de violência hoje é que eles provocam, além do medo natural e justificável, o medo irracional e, às vezes, imotivado. Há casos em que o medo se torna pior que a própria violência. Hoje, muitos têm medo de vir ao Rio de Janeiro. Um medo que não cede à argumentação de que muitos cariocas, por exemplo, nunca foram assaltados. A cultura da violência acabou por criar uma cultura do medo que, como já disse, tornou o medo da violência pior do que a própria violência.
LC: O início dos grupamentos humanos, que deram origem às cidades, foi causado pela necessidade da união dos habitantes de determinadas regiões de se unirem para uma melhor defesa contra inimigos externos. Hoje, o inimigo é interno. Isso pode gerar um processo inverso de isolamento e fuga dos grandes centros?
Zuenir: Todas as formas de isolamento, de segregação, de distanciamento já foram tentadas. Aqui no Rio, primeiro as pessoas tentaram cercar suas casas com grades, depois foram para condomínios fechados. Tentaram criar exércitos particulares de seguranças, se fechar em verdadeiros bunkers, e nada disso deu certo. Um caso controvertido são os condomínios da Barra da Tijuca (conhecido por seus condomínios fechados e shoppings), onde teoricamente as pessoas estariam livres da violência, com a realidade mantida de fora. Por fim, foi constatado que havia uma violência endógena, um tipo de violência interna que se criou nos condomínios. Hoje, um dos maiores problemas é exatamente a violência dos jovens que roubam carros para comprar drogas e as brigas de gangues, tornando os condomínios semelhantes a guetos violentos. Muitas tentativas de segregação, de apartheid, foram tentadas e todas fracassaram. A solução não é fácil. É demorada. É a solução da integração da integração da cidade. O Rio de Janeiro é uma cidade calorosa, de encontro, afetuosa, uma cidade realmente de celebração. O destino do Rio vai ser o de voltar ao encontro, à celebração. Espero que o momento atual seja um acidente de percurso. Espero que a vocação do Rio, seu destino, seja realmente a da integração. O apartheid, seja racial, seja o social, não dá certo em nenhum lugar do mundo e no Rio de Janeiro também não dá. Apesar de tudo, a esperança é que haja realmente o encontro, o destino natural das cidades.
LC: Então a busca de interação cultural, como os projetos que procuram integrar os habitantes da favela com o asfalto, seria um caminho?
Zuenir: Quando eu disse que, às vezes, o medo da violência é pior do que a violência, isso acontece pelo nosso olhar daqui do asfalto para as favelas. Nós temos a ideia, a impressão carregada de estereótipos, de que lá é um antro, uma usina de violência, esquecendo que ali a maioria da população é pacífica, ordeira e trabalhadora. A violência ali é produzida por um núcleo mínimo de 0,1% dos moradores. Eu acho que você olhar para a favela, para o outro, para o diferente, e mudar seu olhar de suspeita, desconfiança, é uma forma efetiva de aproximação. A cultura, mais uma vez, está fazendo isso como fez no fim do século XIX com o samba, que nasceu sendo a música dos segregados, discriminado, e acabou sendo apropriada pela classe média, depois de um primeiro momento em que ela o rejeitava e temia. Está acontecendo um pouco isso com a cultura hip hop, do funk, e com os grupos de música da periferia. Essa é uma forma de integração. No Rio, ou melhor, no Brasil, a economia separa o que a cultura une. A ponte desta cidade partida tem que ser feita além do movimento social, também pela cultura.
LC: Cidade partida foi lançado em 1994. Nestes oito anos o que mudou? Você considera que houve melhora ou a situação se degradou ainda mais?
Zuenir: O que evoluiu daquela época para cá é que, hoje, a sociedade tem mais do que naquele momento a consciência de que a violência é um problema dela também. De que não adianta virar as costas para esta questão. De nada vale dizer que se pagam impostos, portanto isto é problema do governo, ele que resolva o problema da violência. Sabemos que não é assim. Até porque a bala perdida não escolhe cabeça. Ela está caindo do nosso lado, aqui no asfalto. Essa consciência, que ainda é embrionária e precisa ser desenvolvida, começa a tomar corpo na sociedade. Com os movimentos do terceiro setor e toda essa tragédia que aconteceu, de alguma maneira chamamos a atenção para isto. Eu diria que hoje há uma maior consciência da sociedade de que ela tem uma tarefa a cumprir nessa questão.
LC: Então a sociedade, como forma de combater o medo, partiu para tentar conhecer e entender os problemas que causam a violência e, por conseguinte, o medo?
Zuenir: Exatamente. Durante décadas, até mais de um século, fomos criados com todos os estereótipos em relação as favelas, como um antro de violência. Quando você vê as condições de vida lá se surpreende de como é pacifica essa população. Porque, na verdade, todos os bens, direitos e conquistas da cidadania ainda n˜åo chegaram lá. Então criamos uma série de barreiras preconceituosas, uma visão estereotipada, estigmatizando um universo por ele ser diferente do nosso. Diferente na cor da pele, diferente na maneira de morar, o fato de ser pobre... Isto tudo em um processo de associação que é muito mais antigo. Vou me remeter apenas ao período da abolição da escravatura, quando os negros foram jogados na rua: "agora vocês se virem". Por esse processo de discriminação ter sido muito permanente, muito freqüente, ele está arraigado, entranhado na nossa história recente e também na mais remota. Para sair disso leva tempo, mas eu creio que hoje já esteja surgindo uma luz no fim do túnel. Sabemos que a solução está na aproximação e não na guerra. Nós temos uma certa vantagem pois no Brasil não existem questões explosivas, como por exemplo, a questão racial do Leste Europeu, em países como a Iugoslávia em que se mata por achar que o sangue é diferente. Temos preconceito e racismo, mas não é uma forma tão explosiva, de jeito que não estamos a beira de uma guerra racial, étnica. Podemos estar próximos de uma guerra social, isto é, de uma convulsão social. Mas todo problema social tem jeito. A questão da miséria é uma questão de vontade política, que pode ser resolvida com um programa de integração social. O Brasil tem - e o Rio de Janeiro tem muito - uma energia vital, uma alegria, muito grande. Apesar de tudo, neste momento o que vivemos é a vocação da celebração, do encontro, da alegria, da paz.
Zuenir Ventura é jornalista e professor universitário há 40 anos. Ganhou o Prêmio Esso de Reportagem e o Prêmio Wladimir Herzog de Jornalismo , em 1989. É autor de 1968, o ano que nunca terminou, e Cidade Partida. Também é colunista do Jornal O Globo.
Entrevista concedida em 2002 à editora dos Cadernos de Leituras Compartilhadas para a edição MEDO.
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