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  • Jason Prado

Lygia Fagundes Telles: Desejos


Lygia Fagundes Telles é uma das grandes damas da nossa literatura. Mas este é apenas um dos hábitos deste mulher, que, como Eva, pode apresentar muitas faces. Nesta entrevista ela retira a auréola do título pomposo e ora é a mulher política, consciente do papel feminino na sociedade, ora a esposa saudosa e dedicada. Mas talvez seu lado mais encantador seja o que não esqueceu da menina de boina dos anos 40 que só queria estudar direito e escrever.

Fomos conversar com ela para a edição DESEJOS dos Cadernos de Leituras Compartilhadas:

LC: "Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim  queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto". (Verde lagarto amarelo). Você fala da vontade de escrever de uma maneira carregada de sensualidade. Escrever é um ato de paixão, com toda a sedução, o prazer e até mesmo a dor geralmente relacionados a este sentimento?

Lygia: Escrever é como uma ostra, aquele escargot refinadíssimo, o qual vamos abrindo sem saber muito bem o que virá. Mas, sim, o ato é carregado de dor e celebração. Prazer? Às vezes. Tenho um sentimento de autocrítica muito forte em relação ao meu trabalho (não gosto da expressão “obra”), me torno inimiga de mim mesmo quando estou escrevendo. Mas, apesar de tudo, existe o grão da loucura e da felicidade sim. Um exemplo: foi meio a contragosto que eu finalizei o romance As Meninas numa distante praia do litoral paulista. “Eu consegui, eu consegui!”, disse pra mim. Acabei felicíssima, mas um pouco triste também por ter de me desgarrar daquelas personagens com quem convivi intimamente durante meses. Mas, literatura é isso mesmo - dor e celebração.

LC: Seus contos muitas vezes funcionam como espelhos, refletindo sentimentos e desejos escondidos pela racionalidade e moralidade. Em Antes do Baile Verde, por exemplo, a protagonista se divide entre o dever e a culpa para com ao pai moribundo e o desejo de se divertir livremente, até sua fuga desabalada rumo ao sonhado baile de carnaval. Você acredita que o desejo sempre traz esta dualidade, esta escolha entre o que se quer e o que se deve fazer?

Lygia: “Deseja-te a ti mesmo”, de onde é isso? O desejo. Ele tem nos levado aos shoppings, aos supermercados, hein? Vejo com estranheza a sofreguidão das pessoas: - “dá pra parcelar em quinze vezes?!”, pergunta a cliente desejosa. O mercado do desejo. Das pessoas. Mas, às vezes (olha a dor de novo!), este desejo é tão inalcançável, tão irrealizável. Mas, o desejo é inesgotável, dizem os psicanalistas com um que de preocupação - quando vamos parar de desejar? Os budistas pedem calma. Calma! É preciso desejar menos. Da minha parte, quero apenas estudar Direito e escrever alguns livrinhos, pensava eu, uma jovem estudante naquela São Paulo friorenta e ainda habitável. Com a literatura, desejei não o mercado de produtos, mas o das almas humanas. Desnudá-las, conhecê-las profundamente. Terei conseguido? É preciso ambicionar, desejar. Mas com a consciência que fracassaremos, apesar de “a caminhada de mil passos começar com a primeira”, dizia o indiano de roupas soltas e que fez uma revolução, Mahatma Gandhi.

LC: Capitu é uma personagem machadiana vista através do amor, desconfiança e desejo de um homem, mas junto com Paulo Emílio Salles você escreveu o livro Capitu, onde mudou o foco e tornou a personagem ativa. Como foi isso?

Lygia: Na verdade, escrevemos o roteiro do filme Capitu, adaptação do famoso romance, o triângulo de Machado de Assis, Dom Casmurro. Eis a nossa Capitu com seus olhos oblíquos e dissimulados. Ela teria traído mesmo o confuso Bentinho? Não importa. Importa essa mulher no começo de um século difícil. Eis a mulher calada, representante de um começo de século, que não votava, não trabalhava. Era preciso dar mais vida e liberdade a essa mulher. Com isso, ela pôde desejar mais e mais. Eu e Paulo Emílio tentamos fazer isso.

LC. Em um dos seus livros mais conhecidos, As meninas, as protagonistas são muito diferentes entre si (a rica burguesa, a bela drogada e a subversiva) e juntas têm os elementos que teoricamente trazem a felicidade (dinheiro, beleza e ideais). Mesmo amigas elas são solitárias e buscam a felicidade em desejos externos. Você acredita que o que nos motiva é a procura pelo que não temos, que isto é o desejo?

Lygia: O meu romance As Meninas é o próprio retrato do desejo, da legitimidade da busca, do sonho. No caso, representantes de um povo sofrido, explorado... O que seria de nós sem o sonho? Nada. Foi o que me disse um cansado Jorge Luis Borges, prestes a morrer e que eu cito no meu último livro, Durante aquele estranho chá. Assim, é preciso sonhar cada vez mais e mais, embora, como disse, o fracasso nos espreite a toda hora. Mas, sim, precisamos desejar; a tentativa é sempre válida, e, às vezes, só às vezes, o sucesso pleno, absoluto. As três meninas do romance carregam cada uma o desejo de mudar - o país, as pessoas, a vida que lhes cerca. Acho que algumas delas conseguem, mas uma delas...

LC: Você se declarou uma ficcionista. Mesmo Invenção da memória mesclava realidade e ficção. E agora lança o livro Durante aquele estranho chá, onde relata suas lembranças e encontros com outros grandes escritores. O que a motivou a escrever este livro?

Lygia: A idéia e organização deste livro "Durante aquele estranho chá" é do jornalista e escritor Suênio Campos de Lucena, que, além de estudioso, é um grande amigo meu. Ele reuniu durante dois anos todos esses textos que estão no livro. Eles foram publicados ao longo da minha vida em jornais e revistas e eu não pensava em publicá-los, mas havia tanta coisa interessante... Estão lá os meus encontros com Hilda Hilst, Jorge Luis Borges, Drummond, Clarice Lispector, Mário de Andrade, Simone de Beauvoir, enfim, homens e mulheres com quem convivi e amei, como Paulo Emílio Salles Gomes. Então o Suênio acabou me convencendo a publicá-los. Sugeri um ou outro texto, mas, de qualquer forma, acabei revisando todos. E, agora, realmente acho o resultado excelente. As ovelhas que estavam soltas foram tosquedas e reunidas. O pastor junta o seu rebanho. Gosto muito de ambos os livros porque eles me remetem a várias Lygias, reais e imaginárias. Afinal o que é ficção e verdade? Difícil distinguir isso quando escrevemos, não? Então, sou todas essas Lygias que estão nos livros. Está lá a jovem estudante de Direito de boina em plenos anos 40 tomando chá com o Mário de Andrade na Confeitaria Vienense (esse é o texto que dá título ao livro); depois, eis uma jovem senhora em Paris, conversando com a Simone de Beauvoir; em seguida, estou eu escrevendo com o Paulo, que tanto amei... Tudo isso está no livro e eu apareço como naquele poema do Mário, "eu sou trezentos e cinqüenta".


Lygia Fagundes Telles Contista, romancista e advogada. Membro da Academia Brasileira de Letras. Entre suas obras estão: Depois do baile verde, As meninas, Ciranda de pedra e Capitu em parceria com Paulo Emílio Salles

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