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  • Jason Prado

Ricardo Azevedo conversa com João Zuccaratto


Em que momento da sua vida você definitivamente aprendeu a ler? Consegue lembrar e descrever como foi o processo deste aprendizado?

Não me lembro direito desse período. O que posso dizer é que, por sorte, tive uma infância cercada de livros. Meu pai era professor, tinha uma ótima biblioteca e tanto ele como minha mãe estavam sempre lendo alguma coisa. Esclareço que eles nunca mandavam ler nada. Eles simplesmente liam e essa foi uma grande lição. Lembro de um livro que consultei muito, mesmo antes de saber ler. Era um livro velho, de capa dura, grosso e cheio de desenhos coloridos, impresso em Portugal no começo do século XX. Mais tarde vi que não tinha nenhum dado bibliográfico. Meu pai tinha mandado encadernar com um título genérico na lombada: Livro de Gravuras. Cada prancha tratava de um assunto e o conjunto das imagens formava uma espécie de inventário de tudo: nossa mobília, nossas louças, instrumentos agrícolas, instrumentos musicais, ferramentas, coisas diversas, pessoas da família, animais domésticos e selvagens, árvores, plantas, povoados, habitações, as estações do ano, as invenções modernas, armas antigas e modernas, os meios de comunicação, jogos infantis e por aí afora. Este livro velho foi um verdadeiro tesouro para mim. Era como se ele me revelasse que todas as coisas – eu inclusive – faziam parte de uma imensa e riquíssima estrutura. Tudo no mundo parece que se interligava e essa sensação me apaziguava e ao mesmo tempo me fascinava.

Quando a leitura deixou de ser uma obrigação para ser um grande prazer? Conseguiria, atualmente, viver sem ler, ou viver sem escrever?

Creio que a leitura é um processo construtivo lento e demorado que exige trabalho, treino e capacitação. Não gosto dessas imagens do tipo “viagem da leitura” pois elas encobrem o fato de que a leitura dá prazer mas também exige esforço. Além disso, existem tipos de leitura. Ler ficção pode ser muito diferente do que ler poesia. Estudar através da leitura é diferente de ler tanto ficção quanto poesia. Veja o meu caso. Decidi fazer pós-graduação com 40 anos de idade. Entre mestrado e doutorado foi um processo que levou mais de dez anos. Tive que ler e fichar uma infinidade de livros. No começo foi muito difícil. Descobri que tinha o hábito da leitura mas não sabia estudar. Demorou até eu conseguir atingir um certo ritmo de leitura satisfatório. Tenho mantido um ritmo bom mas se parar de estudar ele certamente vai cair.

Quanto à outra pergunta, não dá para imaginar minha vida sem ler e escrever.

Há características especiais, manias, hoje em dia, na sua maneira de ler? Acha importante ter algum tipo de comportamento especial na leitura?

Cada um tem que descobrir o seu jeito e seu ritmo como leitor. O importante, repito, é saber que o hábito da leitura é construído e envolve treino e vontade. É como fazer ginástica. Você vai entrando em forma “física” e aumenta sua performance como leitor. Um coisa eu garanto: o leitor treinado sente muito mais prazer.

Que obra mais influenciou sua formação de leitor? E a de escritor? Sugere alguma forma, algum método, para levar uma pessoa ter curiosidade em ler?

É difícil citar uma obra específica pois o que caracteriza essa formação, acho, é a diversidade. Costumo dizer que leitor é quem sabe diferenciar os tipos de livros existentes e utiliza-los em beneficio próprio. Enquanto, por exemplo, os livros técnicos e didáticos são informativos e impessoais, os livros de ficção e poesia costumam ter textos marcados pela subjetividade. Além disso, tratam de assuntos que não podem ser chamados de “informação” e não são passíveis de lições. Por exemplo, a busca do auto-conhecimento, a paixão, a confusão entre a realidade e a ficção, a construção de própria voz, a luta do velho contra o novo (ou tradição versus modernidade) , a perspectiva da morte e coisas assim.

Aceita a separação entre literaturas infantil e adulta? Que livro indicaria para fazer uma criança gostar de ler? E para tornar um adulto não-leitor num leitor?

Acho essa discussão inútil. Evidentemente existem diferenças e semelhanças entre adultos e crianças. Prefiro uma literatura que trabalhe com os pontos comuns entre as faixas de idade. A meu ver, as características relevantes da ficção e da poesia estão presentes nas boas obras da chamada literatura infantil. Por trás dessas divisões e rótulos , creio, está a indústria que busca criar “fatias de mercado” para poder escoar seus produtos com mais eficiência. Desse jeito vai haver o dia em que teremos poesia para mulheres separadas de 32 anos e romances para engenheiros solteiros que apreciam o futebol.

Outra coisa: é comum encontrar adultos e crianças que imaginam que livros sempre trazem lições e informações como se a realidade e as relações humanas se restringissem a isso. É preciso ser claro: há assuntos sobre os quais ninguém pode ensinar, por exemplo, a paixão, a amizade ou a morte. Esses são temas da literatura e quando a pessoa se apercebe disso tende a se interessar pela literatura.

Acha necessário que o Governo tenha uma política nacional de incentivo à leitura? E tem alguma sugestão para o desenvolvimento da leitura no País?

Francamente, preocupa ouvir autoridades falarem em “pós-modernidade” como se o mundo vivesse um processo único, natural e óbvio. Ora, vivemos no Brasil e não na França. Não é possível que 15% da população, a elite, fale em nome dos restantes 85% com tamanha segurança. Estamos num país com um número incalculável de pessoas, a grande maioria formada por analfabetos e semi-analfabetos, que constroem suas vidas a partir de hábitos culturais e mentais pré-modernos. Refiro-me a modelos de consciência que valorizam e mantém, mesmo vivendo nas grandes cidades, 1) as relações hierárquicas consangüíneas e tradicionais (famílias, compadrios, comunidades e contextos locais); 2) a valorização do pensamento intuitivo criado a partir da experiência concreta de vida (e não a partir de teorias e do conhecimento crítico, abstrato e programático); 3) a religiosidade como explicação última; 4) uma moral chamada por alguns de “ingênua”, não baseada em valores universais e abstratos mas sim num conjunto heterodoxo que faz conviver valores coletivos, valores individuais, solidariedade, malandragem, justiça feitas com as próprias mãos; 5) uma grande valorização do senso comum representado, por exemplo, pelos ditados (“quem senta na garupa não pega na rédea”, “quem anda na linha, o trem esbagaça” etc.) e 6) uma profunda e visceral ligação com a oralidade o que implica em formas específicas de consciência e mesmo de personalidade, formas estas diferentes daquelas produzidas pela sociedade moderna, individualista e escolarizada, enraizada na cultura escrita.

O que ocorre? Quando crianças filhas de pais analfabetos, ou mesmo adultos analfabetos, matriculam-se na escola, vêem-se obrigados a enfrentar o discurso da cultura oficial marcado pelo pensamento analítico, pela informação, pela abstração, pela secularização, pela impessoalidade e pela objetividade. A escola parece afirmar: “Agora sim! Finalmente você vai aprender a ler e escrever e portanto entrar em contato com o "certo", com a “racionalidade” e com o “conhecimento”.” Segundo tal discurso a “realidade” e a própria “verdade” só seriam acessíveis através de informações e procedimentos auto-intitulados racionais e científicos. Fora disso, tudo seria atraso e ignorância.

Despreza-se, em outras palavras, uma imensa, complexa e heterodoxa visão de mundo representada pela cultura popular (cerca de 80% da população!).

Para alunos que já vêm de uma tradição enraizada na cultura escrita (por exemplo, crianças filhas e netas de pais alfabetizados) o discurso da escola talvez faça algum sentido.

Para os alunos que vêm da tradição oral – a grande maioria da população brasileira – tal discurso, a meu ver, acaba por apresentar um caráter autoritário, preconceituoso e excludente. Diante dele, as pessoas vêem-se colocadas numa espécie de limbo: levadas a desprezar tudo que são, seus pais, seus avós, suas tradições, crenças e costumes, ao mesmo tempo, sentem dificuldade em se familiarizar ou se identificar com a tal "verdade" que implica, necessariamente, na adoção de um modelo de pensamento estranho à sua formação

Acredito que sem levar em conta a existência de diferentes modelos culturais e cognitivos construídos socialmente, e sem o uso programático das formas literárias populares na escola (contos de encantamento, adivinhas, quadras etc.), nem as melhores intenções farão avançar a luta pela alfabetização, pela educação e pela formação de leitores, algo tão desejado por toda a sociedade. Como disse, vivemos aqui e não em outra parte.

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