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  • Sueli Oliveira Rocha

Precisamos falar sobre isso

Democracia não combina com preconceito - Cidadania não combina com desigualdade

Sueli de Oliveira Rocha


Falar sobre cor como componente étnico sempre causou embaraços às pessoas. Por esse motivo, o grande desafio que a pluralidade cultural enfrenta no Brasil é o do respeito às diferentes etnias que nos compõem, valorizando os traços distintivos das diversas culturas que contribuem para a formação da identidade brasileira. No último censo populacional, os dados do IBGE revelaram que quase metade (46,3%) da população brasileira considera-se de cor não-branca. Entretanto, o silenciamento sobre esse fato leva a que, no senso comum, neutralizemos na pele branca a pluralidade brasileira quanto à cor de pele. O mosaico étnico que nos constitui poderia e deveria ser tratado como um dado de desenvolvimento cultural. Mas não é o que ocorre, em especial no que diz respeito aos afro-brasileiros.


É bem verdade que, por conta da Lei nº 10 639/03 — que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei número 9.394/96) para acrescentar a ela os artigos. 26-A(1) e 79-B(2) —, as discussões em torno da questão étnico-racial ganharam maior impulso, em especial nos meios de comunicação. A produção acadêmica em torno da temática também aumentou. As diferentes abordagens exibidas pelos estudiosos do tema passaram a oferecer subsídios mais ricos em conteúdo para os que desejam discutir seriamente a nossa diversidade cultural e étnica.


A promoção da igualdade nas relações étnico-raciais, entretanto, só se concretizará se o que estabelece a Lei nº 10.639/03 realmente chegar às salas de aula. Estudioso do tema, o professor e escritor Alaor Gregório de Oliveira(3), analisando a coleção didática classificada como a mais adotada na rede pública de ensino da cidade de Maringá, no período compreendido de maio de 1998 a junho de 1999, concluiu pela “existência de um silenciamento quase que total sobre a participação efetiva em nossa sociedade da população não-branca”.(4) A esse respeito, o pesquisador afirma:

Silenciar sobre a existência dos diferentes, entre os quais se encontram os afro-descendentes, acaba sendo uma forma eficaz de cerceamento de referenciais positivos necessários à formação da auto-estima na criança não-branca. Se considerarmos que a escola não deve ter somente o compromisso com o ensino e práticas pedagógicas, mas também com a formação integral do indivíduo, preparando-o para a vida, as ações discriminatórias nesse ambiente têm um poder degenerador imensurável na auto-estima da criança negra.


É inegável que, ao silenciar sobre a presença do negro como um partícipe atuante em nossa sociedade, ou focalizá-lo como folclórico e exótico, o livro didático contribui para a sedimentação da exclusão social desse contingente significativo da população brasileira. Isso acaba acontecendo porque a criança não-branca simplesmente não se vê inserida no contexto sócio-cultural a que pertence. Ao mostrar situações vivenciadas apenas por personagens brancas, quase que invariavelmente integrantes da classe média, a escola brasileira se mostra feita por e para brancos.(5)


A análise de Oliveira refere-se a escolas da primeira etapa do Ensino Fundamental, à qual se dirige a coleção didática por ele estudada. Mas é possível estendermos suas conclusões à Educação Infantil. Segundo o Censo Escolar de 2005, o Brasil tem 7.205.013 matrículas em creches e pré-escolas. Desse total, os pais e/ou responsáveis pelas crianças matriculadas as consideram:

  • De cor preta ou parda: 3.006.832 (41,73%);

  • De cor branca: 2.936.594 (40,75%);

  • De cor amarela: 100.092 (1,38%);

  • Indígenas: 41.828 (0,58%);

  • De cor não declarada: 1.119.697 (15,54%).

Apesar desses percentuais, na Educação Infantil ignoramos que o Brasil é um país multi-étnico e pluricultural. Nas histórias contadas nessa etapa da escolaridade, predominam os heróis com características européias: brancos, loiros, de olhos azuis. Longe de nós, apaixonados pela magia dos contos de fadas, abominar Cinderela ou Rapunzel, por exemplo. Mas devemos destacar o fato de que na formação do repertório lúdico e mágico da criança cabem heróis de todos os povos, principalmente os que contribuíram para a formação da miscigenada identidade étnica e cultural brasileira.


A rara presença de protagonistas negros nas histórias produz efeito negativo na construção da identidade das crianças de etnia não-branca, que se deparam com padrões de beleza que não são os seus, mas que o meio que as rodeia toma como paradigma estético. Essa situação é grave, principalmente se considerarmos que a essas crianças não é dada a oportunidade da convivência com o diferente. Assim, elas se apropriam de conceitos discriminatórios em um momento de formação da personalidade. Pela ausência de referenciais positivos que lhes elevem a auto-estima, acabam envergonhando-se da própria origem, rejeitando-a para evitar a discriminação, e passam a considerar como modelo apenas os valores da cultura branco-européia impostos pela escola.


Pelo último Censo Escolar, a maioria das crianças matriculadas na Educação Infantil é de cor negra ou parda. Mesmo que deixemos de lado todos os valores éticos, só esse fato já demonstra que as histórias, as lendas e a cultura africanas e afrobrasileiras devem alcançar maior presença nos currículos, desde essa etapa da escolaridade.


Por esse motivo e ainda considerando que o dia 20 de novembro foi incluído no calendário escolar como o Dia Nacional da Consciência Negra, lembramos que a literatura é forte aliada do professor, que pode levar às salas da Educação Infantil livros que dão oportunidade para discutir a miscigenação brasileira, os casos de preconceito e discriminação, livros que contam sobre outro modos de ser e de viver, outras culturas e outros heróis, nos quais a criança pode se ver representada e valorizada, tanto pela etnia como pela cor de pele.


Um livro clássico é “Menina bonita do laço de fita6, que encanta crianças e adultos. Com base nele, sugerimos uma seqüência didática para o desenvolvimento do tema da diversidade, não somente com o objetivo de apresentar aos alunos a riqueza da diversidade étnico-cultural brasileira, contribuindo para que as crianças se apropriem de valores como o respeito a si próprias e ao outro, mas também e principalmente com o objetivo de elevar a auto-estima do aluno negro. A sugestão é que as atividades sejam desenvolvidas durante um período mínimo de cinco dias, no decorrer dos quais o(a) professor(a) irá:


1. Apresentar a história à classe, contando-a, sem mostrar o livro.


2. Pedir às crianças que dêem um título (um nome) à história ouvida, escrevendo na lousa as sugestões apresentadas.


3. Contar que quem escreveu a história foi Ana Maria Machado, uma escritora brasileira que escreve livros para crianças, principalmente. Se o(a) professor(a) já tiver lido para a classe outros livros da autora, relembrar o fato aos alunos, se possível, mostrando-os.


4. Dizer o título do livro: “Menina bonita do laço de fita” e comparar com os nomes apresentados pelos alunos na atividade 2, perguntando a eles se gostaram mais do nome escolhido por eles próprios ou o escolhido pela autora; mostrar às crianças que nem sempre temos a mesma opinião sobre um mesmo fato ou situação e que o importante é que aprendamos a respeitar todas as opiniões; comentar os nomes escolhidos pelos alunos, na medida em que se afastam ou se aproximam do nome original da história.


5. Mostrar a capa do livro aos alunos. “Ler” a imagem da capa com eles, fazendo perguntas sobre a ilustração: a cor da pele da menina, do coelho, o cabelo da menina (quem usa cabelo assim? é difícil fazer um penteado como esse? leva muito tempo?). Destacar o olhar apaixonado, pensativo-sonhador do coelho. Pedir aos alunos que mostrem o que mais na ilustração indica que o coelho está apaixonado. Dizer o nome do ilustrador e falar sobre a importância da ilustração na leitura.


6. Ler o livro para os alunos, agora parando em cada página, mostrando as imagens e destacando as palavras e expressões que valorizam a menina, que a retratam como bela: “Era uma vez uma menina linda, linda. Os olhos dela pareciam duas azeitonas, daquelas bem brilhantes. Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feitos fiapos da noite. A pele era escura e lustrosa, que nem o pêlo da pantera negra quando pula na chuva.. Os adjetivos e comparações usados pela autora vão além de aguçar a imaginação infantil (olhos = duas azeitonas ‘daquelas’ bem brilhantes; cabelos = fiapos da noite; pele = pêlo da pantera negra quando pula na chuva); eles evocam uma imagem positiva da menina, valorizando nela aspectos como cabelo e cor de pele, que normalmente são “maquiados”, escondidos, quando a personagem é negra. A beleza natural da menina ganha enfeites que reforçam seu encanto, dando a ela ares de personagem de contos de fadas, pois: “Ainda por cima, a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar com laço de fita colorida. Ela ficava parecendo uma princesa das Terras da África, ou uma fada do Reino do Luar”. Esses dois trechos contribuem para que, ao imaginário infantil a menina seja apresentada como uma bela princesa de contos de fadas, o que é extremamente positivo e eleva a auto-estima da criança, que se identificará com a heroína. Perguntar aos alunos se eles têm uma idéia de por que o coelho quer ter a cor de pele da menina. Será que ele não está satisfeito com a própria cor? Comentar com as crianças as respostas dadas. É importante que o(a) professor(a) destaque que além de muito bonita, essa heroína é também muito esperta e criativa, pois mesmo não sabendo responder às perguntas do coelho, sempre tem uma solução para que ele se torne da cor desejada: cair na tinta preta, tomar muito café, comer muita jabuticaba... Antes de ler o trecho que fala da intervenção da mãe no diálogo entre a menina e o coelho, perguntar se alguém lembra como era a mãe da garota. Comparar o texto escrito (“uma mulata linda e risonha”) e a ilustração da mãe que é a de uma linda moça, moderna, bem vestida e arrumada (enfeitada, pintada, cabelos penteados), o que também contribui para que a classe forme uma imagem estética positiva da mulher negra.


7. Aproveitar a descoberta do coelho (“a gente se parece sempre é com os pais, os tios, os avós e até com os parentes tortos”) e perguntar aos alunos com quem eles acham que se parecem. Essa atividade pode desdobrar-se em outras, por exemplo:

a) as crianças podem entrevistar os pais para saberem com quem se parecem e apresentar os resultados da pesquisa oralmente (Por exemplo, dizendo frases como: Minha mãe diz que meus olhos são parecidos com os dela, mas que meus cabelos e minha boca se parecem com os da minha avó.);

b) os alunos podem levar fotografias de parentes (pais, avós, tios, irmãos, por exemplo); atrás de cada foto deve constar o nome da criança que a trouxe; os alunos dividem-se em grupos de quatro. As fotos de cada grupo são empilhadas, com a frente para cima; os alunos tiram a sorte para ver quem começa jogando; o primeiro pega a primeira foto e tenta adivinhar quem a trouxe, observando as semelhanças entre as fotos e os colegas de grupo; se foi ele mesmo quem trouxe a foto, deve embaralhar a pilha, para que a fotografia saia do primeiro lugar; enquanto for acertando, o jogador continuará jogando. Ganhará o jogo quem tiver acertado mais. Ao final, as crianças devem contar aos colegas de grupo quem são as pessoas que estão nas fotos. Terminada a brincadeira, o (a) professor(a) colocará para a turma a seguinte questão: somos parecidos com as pessoas da nossa família? O coelho branco estava certo em suas conclusões?


8. Pedir às crianças que desenhem: a) a menina do laço de fita e a mãe; b) o coelho e sua nova família; c) suas famílias.


9. Organizar uma roda de conversas. Reler o trecho: “O coelho achava a menina a pessoa mais linda que ele tinha visto em toda a vida. E pensava: — Ah, quando eu casar quero ter uma filhinha pretinha e linda que nem ela.” Questionar: O que é ser bonito? Como uma pessoa deve ser para ser bonita? Provavelmente surgirão respostas diferentes umas das outras. Retomar o que foi dito na atividade nº 4 e mostrar às crianças que nem sempre temos a mesma opinião sobre um assunto e que isso é muito bom, pois o mundo seria muito aborrecido se todos pensassem do mesmo jeito e se, por exemplo, só existisse um único modelo de beleza. Destacar que o importante é respeitar as diferenças. Conversar com a classe sobre os padrões de beleza existentes em “Menina bonita”.


10. Mostrar, num mapa-múndi, os cinco continentes — a América, a Europa, a Ásia, a África e a Oceania, ressaltando que eles são divididos em países, cada um com seus costumes e tradições, suas festas, músicas e danças, suas religiões e seu jeito de ser, pois ninguém é igual a ninguém e é isso que dá graça à vida.


11. Conversar com as crianças sobre as “famílias” (povos) que formam o Brasil: os índios, o negro, o colonizador europeu, os imigrantes italianos, japoneses, árabes, judeus etc. Explicar que esses povos foram se cruzando, para formar a grande família brasileira, que tem as características de suas origens. Lembrar aqui as contribuições desses povos nas festas, na música, na culinária, nas histórias etc.


12. Retomar a atividade 10 e complementá-la, destacando a importância do respeito à diversidade étnico-cultural que compõe o Brasil.


Atividades complementares


1. Uma boa história ninguém resiste, seja com que roupagem vier. E ela pode vir vestida de muitas formas: pode vir apresentada oralmente, ou por escrito, por meio de uma cantiga ou de um desenho. Então, convide seus alunos para assistirem ao desenho animado “Kiriku e a feiticeira”(7), baseado em um conto africano sobre uma comunidade que era dominada por uma terrível feiticeira, Karabá. O filme traz o encanto da tradição oral africana, narrando a história de Kiriku, que já nasceu falando e escolheu o próprio nome. Inteligente, independente e corajoso, enfrentou uma feiticeira de quem todos tinham medo. Em sua jornada contra os poderes de Karabá, aprendeu valores como amor, astúcia, coragem, curiosidade, generosidade, tolerância e verdade.


A história narrada contribui para combater a ideologia da inferiorização do negro presente nos estereótipos que a escola vem reproduzindo por omissão de pessoas, que fazem vistas grossas a brincadeiras e apelidos alusivos à cor da pele, por exemplo. Kiriku eleva a auto-estima do aluno negro que, com certeza, se identificará com esse herói destemido, cuja saga começa desde o nascimento e chega à vida adulta.


Passado o filme, o(a) professor(a) poderá perguntar, por exemplo, como eram as casas da aldeia de Kiriku, a vegetação, as pessoas... e pedir que os alunos desenhem uma aldeia como a retratada no filme. Poderá falar sobre a importância dos griots, os contadores de história africanos e ainda discutir as diferenças do mundo infantil e adulto, visto que Kiriku passa por essas duas fases. O filme poderá também ser apenas “curtido”. Nesse caso, o(a) professor(a) deixará que a conversa sobre o desenho corra solta. Ele (ela) ouvirá os comentários das crianças para “amarrar” algumas idéias, em especial, aquelas sobre valores e sobre o protagonista, herói negro e africano.


2. O acaso (ah, os incidentes que dão especial molho ao nosso cotidiano!) me fez topar com Valentina(8). Foi caso de amor à primeira vista, daqueles que nos entortam sem que saibamos explicar as razões. Foi o tema? O jogo de pontos de vista? Os jogos de palavras? Como saber? Talvez tenha sido porque ela tem pais que contam histórias para acalmá-la e fazê-la adormecer em segurança, mesmo quando os dragões do lugar cospem “fogo e barulho para todos os lados”. Paixão fulminante. Não podia deixar passar. Tudo aconteceu de repente, quando a valente princesinha, sem se fazer anunciar, atravessou a porta de asa aberta de seu castelo e reivindicou lugar na roda.


Valentina é para ser lançada como rede ao mar numa roda de histórias. Leitura para ser dividida com crianças ávidas de histórias. Leitura compartilhada, alcançando tanto quem mora perto como quem mora longe de tudo. Valentina, a princesinha que mora num castelo “na beira do longe, lá depois do bem alto”, como a grande maioria das crianças brasileiras. Valentina, a menina que, como tantas, tem pais que saem para trabalhar ”bem antes do sol engatinhar”, porque desejam que ela seja “alguém na vida”.


A roda de histórias gira no virar das páginas de Valentina. A imaginação voa na boniteza das metáforas, que descrevem a menina, dona de “uma beleza que não cabia em página de livro”, ”orelha de abano para escutar cochicho de nuvem e perna comprida para escutar pensamento”, riso esparramado pelo rosto “que nem gato preguiçoso” e óculosque eram “guarda-sóis transparentes”.


Ah, e as ilustrações de Valentina? É danado de bom, esse Suppa! Usa traços simples e fortes no desenho, junta num mesmo saco papel reciclado, papel jornal, recortes, fotografia... Só quem sabe muito pode misturar tanto! É preciso fazer Valentina rodar na mão das crianças, elas precisam olhar bem de perto os efeitos que essa mistura provoca. Elas precisam ver que Valentina traz sempre uma coroa à cabeça, como toda princesa de conto de fadas que se preze. Afinal, se ela é mesmo uma princesinha, nada mais justo que a ilustração realce sua realeza! E a coroa de jornal avisa: a imaginação não tem limites. Com um limão pode-se fazer uma boa limonada. Com jornal, então: até roupa, sabiam? Além do mais, para os que têm olhos de ver, a coroa de jornal é puro ouro na cabeça de Valentina, uma princesinha de verdade, daquelas de sentir grãozinho de ervilha debaixo de vinte colchões.


E, mais importante do que ser princesa, é o fato de que Valentina se sente princesa. Mas ela não é a única. Se perguntarmos às crianças participantes da roda, vamos saber que muitas são as “princesinhas da casa” , no conceito de seus pais. E Valentina não apenas se sente uma princesa, ela enxerga os pais como rei e rainha. Está aí a ilustração do Suppa para confirmar as palavras do Márcio Vassallo, autor da história. Valentina só não entende por que, sendo rei e rainha, os pais trabalham tanto e não ficam com ela. E esse Márcio Vassallo, o autor? Parece que adivinha as coisas! Ele colocou na Valentina a mesma sensação — misto de medo e uma pontinha de revolta — que as crianças da roda de história sentem, porque seus pais trabalham demais. Ah, tempos, esses em que os pais mal conseguem ficar perto dos filhos! Reclame por elas, Valentina, enquanto a roda pára e a conversa das crianças gira em torno de como aproveitam os momentos (raros, para a maioria) de lazer com os pais, em torno de como enxergam a importância do trabalho deles para o sustento da família....


Em Valentina, apaixonante é o jogo que escorre do texto escrito e encharca a imagem, tão plena de significações quanto a escrita, revelando/sugerindo o que as palavras não contam, para que nós, leitores, cuidadosamente caminhemos para além delas. E nesse caminho aprendemos, por exemplo, que a cor da pele do pai de Valentina é branca e que a da mãe é negra. Que Valentina, a filha, é negra. Pois é, a nossa princesinha tem a mesma cor de pele que a maioria das crianças matriculadas na Educação Infantil no Brasil. Aliás, como tantas outras heroínas da vida real.


Em Valentina,o cuidado com as palavras é o do garimpeiro que se afunda no rio em busca da pedra mais preciosa, que busca e extrai faíscas de ouro, perdidas no solo. É trabalho meticuloso, de procura. Mas também de descobertas tão cristalinas quanto o sorriso límpido das crianças. “Valentina também mostrava que a cama em que ela dormia tinha vontade guardada para a noite e cheiro de abraço amarrotado. E o castelo da Valentina tinha brilho que transbordava da sombra. O quintal da Valentina tinha galo que esfregava o berro no muito cedo.” É uma lindeza só! Esse Márcio Vassallo tem delicadezas de filigranas com as palavras, cuidados de mãe embalando filho para não espantar sono. É por isso que Valentina ficava toda “sorrida” quando, lá de baixo, apontava o castelo onde morava. Olhem só que achado!!! Que outra palavra cairia melhor do que esta “sorrida”, composta talvez pela imprevisível união de “sorridente” e “cheia de vida”, ou outras duas quaisquer, letras engolidas na palavra inventada para transbordar o sorriso, a alegria, o bom orgulho de Valentina pelo lugar onde morava.


Valentina é feliz, apesar do medo causado pelos “dragões do lugar”, que cospem “fogo e barulho para todos os lados”. Os nossos medos entram na roda. Quem não tem medo? E temos medo do quê? do escuro? de dentista? da morte? de polícia e bandido? da insegurança do lugar onde moramos? Como nos protegemos do medo? O rei e a rainha protegem o castelo com pensamentos bem esticados (ah, o aconchego das histórias! Não dá mesmo vontade de esticar a palavra “bem”, como numa história sem fim, tal Sherazade mil e uma noites espantando a morte?), contando histórias para que a princesinha se acalme e adormeça. Quem ouve histórias na hora de dormir? Quem conta? Que tipo de histórias?


Girando a roda da história, aprendemos que Valentina foi conhecer Tudo, que ficava lá embaixo e onde tudo era muito igual: as pessoas usavam as mesmas roupas, faziam os mesmos gestos, gostavam das mesmas coisas e das mesmas cores, faziam os mesmos passeios e falavam do mesmo jeito. De lá de baixo, descobriu que o seu castelo ficava ”no meio de um bocado de castelos, num morro do Rio de Janeiro”. E nesse passeio, enquanto Márcio Vassallo mostra com palavras o contraste entre a mesmice de Tudo e a vivacidade e cor do lugar onde Valentina mora, o ilustrador Suppa opôe uma foto em preto e branco e sem vida da cidade do Rio de Janeiro a uma colorida favela num morro possível carioca. Texto escrito e imagem brincam em sintonia, reforçando a narratividade da história.


Valentina joga também com a desconstrução de preconceitos. Sua família mora numa favela e é nobre, composta de rei, rainha e princesa. O que é ser nobre? O que é preciso para obter esse título? Nobreza existe em qualquer lugar e em qualquer pessoa ou só algumas pessoas, que vivem em determinados espaços podem ser nobres? Questões provocativas jogadas na roda podem ser uma excelente oportunidade para uma discussão sobre valores, sobre a diversidade étnica, as diferenças de credo, de cor, de opiniões etc., num trabalho que leve à conclusão de que a diversidade é fator de riqueza cultural, que é preciso respeitar as diferenças, construindo no dia-a-dia uma atitude de respeito a si próprio e ao outro.


Valentina, tão semelhante a tantas outras valentinas — como as que formam a roda — , na aparência, na maneira como vive, no lugar onde vive. Por isso, a roda pode continuar em atividades de desenho (o retrato de Valentina e auto-retrato, destacando características físicas como cabelo, cor dos olhos, cor da pele etc., estimuladas por questões do tipo: Como você é? Como são seus cabelos, seus olhos...? Você usa óculos?). A sala onde está acontecendo a roda de história pode ser enfeitada com um varal onde os desenhos produzidos ficarão expostos, qual bandeiras desfraldadas, ao vento. É possível também, partindo da observação da cor dos componentes da roda de histórias, fazer um gráfico da turma quanto a essa questão. Qual a cor que vai predominar? Depois de descobrirmos isso, uma conversa sobre a diversidade étnica que compõe o Brasil será atividade bastante produtiva.


O castelo da princesinha está encarapitado no morro. Depois da roda de história, podemos produzir, em grupos, um desenho retratando o morro, grávido de castelos certamente lotados de outras tantas valentinas. Para isso, podemos utilizar material variado, como papéis diversos, revistas e jornais velhos, retalhos de tecidos, giz de cera etc., juntando esse material numa colagem bem criativa, como o próprio projeto gráfico do livro.

Essas são algumas sugestões, apenas. O (A) professor(a) deve assumir uma postura de combate a todas as formas de discriminação e preconceito, valorizando as diferentes etnias que constituem o Brasil e que, de certa forma, estão representadas nas crianças que compõem uma sala de aula na Educação Infantil. É importante destacar que essas propostas não podem, de forma alguma, ter qualquer ranço de obrigatoriedade, de imposição, de dever que vá diminuir a beleza do texto. Valentina tem um texto para ser sentido, um texto que evoca imagens e emoções.


Para finalizar, um destaque: para assumir o compromisso de trabalhar a diversidade cultural e étnica na Educação Infantil, o(a) professor(a) precisa ter segurança quanto ao que será desenvolvido. Um caminho para isso é a reflexão conjunta dos professores nas reuniões pedagógicas, procurando respostas a indagações como: Sou preconceituoso(a)? Já vivi situações de discriminação ou preconceito? E, tratando-se da etnia negra: O que sei sobre o continente africano? O que sei sobre as condições dos africanos escravizados no Brasil? O que sei sobre suas lutas de resistência, seus heróis, suas histórias? Conheço a história de Zumbi? Outro caminho, posterior a essa discussão que certamente acontecerá, é o da pesquisa: ela mostrará os diversos povos que formam o continente africano (Você sabia, por exemplo, que ele abriga mais de duas mil línguas e dialetos?), a civilização egípcia, com suas pirâmides monumentais, a influência que os africanos escravizados tiveram na formação da identidade brasileira, nas religiões, festas, cantigas, danças, culinária e, principalmente, histórias que contribuem para ampliar o repertório e povoar o imaginário das crianças com representações positivas do negro.


Nossas escolas pretendem formar cidadãos. E cidadania não combina com desigualdade, assim como democracia não combina com preconceito e discriminação. Se as crianças vão à escola porque desejamos que se desenvolvam plenamente como seres humanos, considerando suas histórias de vida, saberes, vivências, culturas, potencialidades, valores, afetos e interações, precisamos prepará-las com aprendizagens significativas. A escola é campo fértil para o desenvolvimento do respeito a si mesmo e ao próximo, cuidados que não podem ser esquecidos, desde a Educação Infantil. Exercer plenamente a cidadania requer enxergar a diversidade como fator de enriquecimento cultural Cinderela e Rapunzel, sim! Mas Menina Bonita do Laço de Fita e Valentina também!


Sueli de Oliveira Rocha foi Coordenadora da Leia Brasil no Estado de São Paulo.


Notas (1) Art. 26-A: Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. (2) Art. 79-B: O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. (3) Alaor Gregório de Oliveira é presidente da Associação União e Consciência Negra de Maringá, no Paraná. (4) OLIVEIRA, Alaor G. de: O silenciamento do livro didático sobre a questão étnico-cultural na primeira etapa do ensino fundamental. In: Gruhbas Projetos Educacionais e Culturais: Jornal Bolando Aula, nº 66, 2004. (5) Id., op. cit. (6) MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. Ilustrações: Claudius. 7ª ed. São Paulo: Ática, 2004. (7) Kiriku et la sorcière. Duração: 70 minutos. Direção: Michel Ocelot. França, 1998. Distribuidora em DVD: Paulinas Multimídia. A trilha sonora do filme foi feita pelo senegalês Youssou N´Dour, um dos mais famosos músicos africanos, que se tornou popular pela música “7 seconds”. (8) VASSALLO, Márcio. Valentina. Ilustrações: Suppa. São Paulo: Global, 2007.

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