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Jason Prado

Manoel de Barros conversa com Bianca Ramoneda


A poesia de Manoel de Barros é essencial não apenas para aqueles interessados em estudar rios, mas também, e principalmente, para aqueles que atropelados pelos excessos – de trabalho, de informação, de desejos – sentem uma necessidade vital de delicadeza e simplicidade.

Mas Manoel nos passa a perna com sua simplicidade extremamente sofisticada. Ele tripudia das palavras, cria novos quebra-cabeças com a linguagem, rompe a lógica e nos ensina a “desaprender”.

O Pantanal é o cenário dessa poesia, berço do poeta, que fala do homem contemporâneo através do pantaneiro. E nos propõe um mergulho em nossas próprias águas para entrarmos em contato com aquilo que somos na verdade, com nossas origens, nossa pureza que sobrevive escondida.

Entrevistá-lo para o “Leituras” foi uma honra, um presente. Dividi-lo com vocês é um prazer. Por ironia, enviei-lhe minhas perguntas no dia do atentado ao World Trade Center, atordoada com as imagens de tamanha violência. Conversar com ele sobre rios, pássaros, lesmas e meninos parecia coisa de outro mundo. Mas, ainda bem que é desse mesmo, pois assim, acreditamos que ele ainda tem jeito.

Bianca: Manoel, em toda sua obra encontramos a presença dos rios. Eles aparecem, às vezes, como um lugar da infância, outras vezes como um lugar de silêncio e de liberdade. Em um de seus versos o rio aparece até como uma lágrima: “escuto o meu rio: é uma cobra de água andando dentro do meu olho”.

Qual a importância dos rios na sua vida e por que eles são uma referência tão forte na sua poesia?

Manoel: Gosto dos rios. E gosto mais quando eles estão nas margens dos meninos, dos pássaros, das árvores, das pedras, das lesmas, dos ventos, do sol, dos sapos, das latas e de todas as coisas sem tarefas urgentes. Os rios são uma das fontes da minha poesia porque as garças posam neles com os olhos cheios de sol e de neblina. Porque as rãs paridas nas suas margens gorjeiam como os pássaros. Porque as libélulas, também chamadas de lava-bundas, farreiam na flor de suas águas. E porque o menino, em cujas margens o rio corre, guarda no olho as coisas que viu passar. Essa resposta não responde à sua pergunta. Pois não?

Bianca: A falta de água ameaça o nosso planeta. Já estamos vivendo isso no nosso cotidiano com o racionamento de energia.

Em um de seus poemas você diz que “os homens desse lugar são uma continuação das águas”, referindo-se ao homem do Pantanal.

Você, que vive no Mato Grosso, nessa região tão rica em água, sente esse homem ameaçado?

Manoel: Eu vejo o homem pantaneiro, que é uma continuação das águas, ameaçado. Ameaçado porque estamos sepultando a natureza e todos os seus minadouros. A tecnologia avança sobre a pureza das águas e dos seres. Penso que a ciência desvenda alguns caminhos e mata outros. Mas, comparada ao tamanho dos mistérios, a nossa ciência é uma mosca frita. Ou melhor: é do tamanho da asa de uma mosca frita. O desmoronamento que vi ontem do World Trade Center é conseqüência do avanço das ciências. Eu diria, nesse contexto, que um passarinho é mais importante do que um avião. E o cu de uma formiga ainda é mais importante do que uma Usina Nuclear. Sou muito suspeito para dizer isso porque eu gosto muito das formigas...

Bianca: Em sua obra, não só os rios, mas, também, todos os elementos da natureza aparecem com muita freqüência. São elementos que nos remetem à uma simplicidade, a uma pureza. No entanto, sua poesia é extremamente sofisticada na construção das frases, nas invenções de palavras, na quebra da lógica previsível.

Árvores, pedras, sapos, garças e lesmas convivem com referências a Dostoiévski, Chaplin, Fellini, Rimbaud e Proust, entre outros.

Como a simplicidade e a erudição podem conviver?

Manoel: Essa é uma pergunta sobre a minha construção poética, que eu não acredito que saiba responder. Mas vou tentar esse imponderável. Penso que nasci com o olho divinatório, que é o que chamam de dom. É assim que Sófocles, no Édipo Rei, chamou. Ele disse que o artista nasce com esse olho divinatório. E que esse olho deve ser completado com outro olho, que é o olho do conhecimento. E completou que a arte é feita da reunião desses dois olhos. Isto seja: que a arte é o terceiro olho. Eu andei lendo os poetas, os filósofos, ouvindo os músicos, vendo os Picassos para ganhar o olho do conhecimento. Acho que a construção de minha poesia, que é uma construção meio caipira e meio erudita é fruto desse terceiro olho e mais de uma disfunção lírica. Essa disfunção vem do grande fastio que tenho pela palavra acostumada. Adoro uma graça verbal.

Bianca: Qual a sua dica para um professor que queira trabalhar o tema “rios” com seus alunos? O que você recomenda?

Manoel: Que os professores levem os seus alunos para ver a natureza. Não só o rio, mas todas as coisas e os seres que moram nas margens dos rios. Em geral são coisas gratuitas que ensinam muitas riquezas. E os professores, se for o caso, que inspirem os meninos a tomar(?) banho de rio nus, entre pássaros. Seria saudável e sábia lição.

Bianca: E para um jovem que está entrando no mundo da literatura, começando a tomar gosto pelos livros, o que você indica?

Manoel: Uma vez um professor meu, de Latim, no Colégio onde eu estudava, falou para a classe: “- Entre vocês tem algum que sonha em ser poeta?” Três se levantaram. Eu era um dos três. O professor falou: “- Eu tenho um conselho (e deu o conselho). A coisa mais importante que vocês têm que fazer é ler os 20 maiores poetas do mundo, desde Homero, Ovídio, Dante, Camões etc. E isso não serve só para os poetas, mas para todos que queiram entra para o mundo da literatura”. Acho que é por aí.

P.S. Gostei muito dos assuntos. Sempre acho pouco sérias as minhas respostas. Mas, também, tenho preguiça de ser sério. Carinhoso abraço, Manoel.


Entrevista concedida em 2001 e publicada na Edição de Rios, dos Cadernos de Leituras Compartilhadas.

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